Caderno de Recortes #73 — O coração é um caçador solitário/Também guardamos pedras aqui/Liv. Cultura/Pintores cegos/Renoir

oliboni
6 min readFeb 11, 2023

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Tudo certo com vocês, meus queridos foliões?

Semana que vem é carnaval, então não teremos edição, mas vou deixar vocês com duas dicas de leitura para quem quiser ficar no trio elétrico do silêncio.

O coração é um caçador solitário

Terminei de ler semana passada esse livro da Carson McCullers e já tenho certeza que ele estará entre os melhores que lerei esse ano e entrará na minha lista permanente de recomendações.

O livro gira em torno da vida de 5 personagens peculiares em uma cidadezinha do interior do sul dos EUA um pouco antes do início da Segunda Guerra. Apesar de cada capítulo se dedicar a um desses personagens, a narrativa é um fluxo quase contínuo. A linha central da história é um recorte da vida do surdo John Singer. Aliás, o primeiro capítulo do livro que relata a vida dele com um outro amigo surdo é tão poderoso emocionalmente que, já ali, agarra o coração do leitor com todas as forças.

Essencialmente é um livro sobre tipos de solidão que se manifestam mesmo quando os personagens estão cercados de pessoas.

É muito curioso o fascínio dos personagens pelo mudo, o quanto criam uma história da forma que mais lhes convém para preencher o pouco que sabem sobre ele e é impossível não apontar a ironia de todos se atraírem até ele por ele ser um bom “ouvinte” dos seus dramas particulares.

Além da narrativa principal, a história toca em diversos temas incontornáveis como o racismo do sul dos EUA e a exploração dos trabalhadores em um momento que o mundo começa a debater as teorias marxistas. Outro ponto curioso é o quanto grandes eventos históricos são irrelevantes na vida de muitas pessoas. A Segunda Guerra é citada em todas as sinopses e resenhas do livro para contextualiza-lo no tempo, mas ela não chega nem a ser um pano de fundo.

Não posso terminar essa recomendação sem elogiar a edição nacional da Carambaia. O livro está lindo do começo ao fim. Tem um posfácio excelente e a tradução impecável da Rosaura Eichenberg.

Pra quem está em SP, o livro está a venda na Gato sem Rabo e na Ponta de Lança (comprei lá). Mas, não havendo alternativa melhor, a Amazon entrega em qualquer lugar.

Também guardamos pedras aqui

Confesso que eu não sou leitor de poesias (aliás, aceito indicações), mas esse livro da Luiza Romão me pegou.

A chancela do Jabuti ajudou a colocar o livro no radar, mas tudo nele me causou uma boa impressão, afinal, a capa é linda e o título é intrigante.

O livro é todo construído em um paralelo entre a mitologia grega e a realidade dura dos nossos dias.

Todos os títulos dos poemas não personagens da guerra perpétua que era a vida dos gregos no tempo imaginário dos seus deuses.

O texto é preciso, evoca imagens dramáticas e reserva várias pérolas como esse poema:

Pra quem está em SP, o livro está a venda na Gato sem Rabo (comprei lá) e na Ponta de Lança. Mas, não havendo alternativa melhor, a Amazon entrega em qualquer lugar.

Três tigres cegos

É curioso como a figura do pintor cego é recorrente.

Está em cartaz em São Paulo uma peça excelente chamada O cego e o Louco. Com um texto perfeito de Claudia Barral. Alexandre Lino e Daniel Dias da Silva interpretam um pintor cego e seu irmão. A história é engraçada, envolvente, cheia de pequenos momentos dramáticos que remetem para culpas do passado. É um jogo teatral clássico entre dois personagens muito bem delimitados até o final arrebatador.

O cenário do Sergio Marimba cria um espaço cênico muito interessante e ficou perfeito no palco intimista da sala menor do Teatro Sérgio Cardoso.

Um tempo atrás li um livro que eu gostei bastante da Tércia Montenegro chamado Turismo para cegos. É uma abordagem totalmente diferente porque segue a linha de um romance doentio, mas a personagem central é, novamente, uma pintora cega.

Por fim, a Conrad acabou de lançar a HQ A Cegueira Iminente de Billie Scott, de Zoe Thorogood. Novamente com uma pintora cega em uma abordagem totalmente diferente. Essa eu não li ainda, mas espero ler em breve.

Livraria Cultura

Tem uma galera lamentando a falência da Livraria Cultura. Não me junto a esse coro, não por falta de memórias afetivas com o espaço, porque elas são tantas que para mim o Conjunto Nacional e a própria Avenida Paulista não fazem sentido sem a livraria da família Herz.

Quem visitou a Cultura nos últimos tempos sabe que ela transitou de um morto vivo, com restolhos de livros de editoras desesperadas o suficiente para vender para uma empresa que deve para deus e o mundo, para um frankenstein ocupado por editoras que sublocaram pedaços da carcaça do local.

A morte da Cultura é algo anunciado. Junto com a Saraiva, a Fnac e Submarino (Americanas), a Cultura praticou uma expansão megalomaníaca por shoppings e pontos nobres (leia-se aluguéis obscenos), tentou (em menor medida que as demais, para ser justo) transitar para uma loja que vendia um pouco de tudo e, para sustentar o insustentável entrou no jogo predatório que arrasou livrarias menores e trocou o posto de emprego preferido dos universitários para um freakshow de abusos trabalhistas.

A Cultura teve o destino de todo o predador. Foi atacada por um predador maior, mais agressivo e mais eficiente (a Amazon). Um conjunto complexo de fatores matou uma das livrarias mais icônicas de São Paulo, mas, no centro dele, está o amadorismo administrativo de quem achou uma boa ideia parar de investir em bons livreiros, que davam dicas ótimas porque conheciam profundamente a área que trabalhavam, e passou a acreditar que estar no shopping X ou Y era o suficiente para compensar o apodrecimento das relações com os fornecedores e com os trabalhadores.

Tristeza mesmo é isso

Para quem precisar de algo para se lamentar de verdade, segue uma tragédia institucional

Alexandre Carvalho — Superinteressante — 20/01/23

Pintores

E, por fim, Renoir

Vou confessar que tenho uma verdadeira paixão por essas pinceladas bem marcadas que criam um movimento gestual na pintura. Além de serem expressivas, elas são peças importantes do quebra-cabeças que é a ilusão de volume na imagem bidimensional.

O nu feminino é um tema inescapável na arte. Notem como esse é um quadro bem bonito apesar de ter vários probleminhas de proporção na anatomia.

Como já disse antes, não considero o Renoir um grande retratista, mas tem algumas pinturas que ele se supera. Esse olhar dentro dessa composição funciona muito bem.

Algo interessante de notar nessa fase da história da arte é uma tentativa de abandono da “hard edge”, aquelas manchas que recortam de forma bem marcada alguma área da pintura criando a sensação de linhas. Aqui, tudo é praticamente “esfumado”, com as cores em uma fusão constante.

Novamente, mais um quadro para apreciar o movimento das pinceladas.

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oliboni

Diletante profissional, ex-futuro brilhante, praticante do artesanato burocrático